terça-feira, 9 de setembro de 2008

Rui Barbosa e a Constituição literária de 1891

O golpe desferido por Deodoro no Império em novembro de 1889 foi apenas o desfecho de um processo de corrosão do regime monárquico brasileiro, que havia se agravado com a libertação dos escravos um ano antes. A Princesa Isabel, sucessora de Pedro II, imaginou que a Lei Áurea lhe traria grande popularidade, mas, passada a euforia inicial com a abolição, o País percebeu que não havia lugar para os negros fora da escravidão. Com o fim do trabalho escravo nas lavouras - trabalho que seria feito daí em diante pelos imigrantes - os libertos migraram para as cidades em busca de empregos que não havia. Com a abolição nasce não uma sociedade livre e integrada, mas o sub-emprego, os cortiços e o racismo camuflado. A crise de legitimidade do regime monárquico se agravou, os militares não escondiam seu desconforto em obedecer um regime que a ideologia positivista da época considerava uma aberração pela falta de racionalidade. No terreno político, os "republicanos históricos" que assinaram o famoso manifesto de 1870 engossavam o coro de descontentamento e de desconfiança com o futuro do país nas mãos da família imperial. A queda desse regime não tardou, mas foi tão abrupta e sem combates que faz supor que na verdade não houve assim uma ruptura, mas uma nova transição, em que se incorporaram com muita rapidez muitos dos que compunham o regime anterior, os chamados "adesistas".

Ainda na noite do dia 15 de novembro, surge a figura de um dos principais personagens da nascente república brasileira, Rui Barbosa, que passaria para a história como o autor da Constituição de 1891. Vejamos, nas palavras de Aliomar Baleeiro, como se deu este primeiro ato de Rui:

"Rui Barbosa, no cair da noite de 15 de novembro, sentou-se, de caneta em punho, defronte duma resma de papel almaço, institucionalizando, os fatos da manhã. E assim, antes que voltasse ao solo toda a poeira da cavalgada de Deodoro, começou este a assinar o Decreto orgânico que instituia o Governo Provisório da nova República. Seguiram-se a separação da Igreja e do Estado e, dia a dia, inovações políticas e jurídicas de toda espécie..."

Rui, desde os primeiros momentos, foi o arquiteto das novas instituições republicanas, tomando como exemplo a experiência norte-americana, inclusive o próprio nome do país, que passava a se chamar "Estados Unidos do Brazil", em alusão ao federalismo escolhido como novo modelo político de organização territorial e constante do art. 1º do Decreto escrito por Rui Barbosa e assinado perlo Marechal Deodoro, a saber:

Art. 1º. Fica proclamada provisoriamente e decretada com a forma de governo da nação brazileira a República Federativa.

Vale notar que o decreto fala em proclamação provisória da República, o que implica o reconhecimento de que essa - a escolha da forma de governo - seria uma tarefa do Poder Constituinte, ou seja, consolidar definitivamente a mudança de regime por um processo democrático de institucionalização constitucional. Defato foi instalada a Assembléia Nacional Constituinte em 15 de novembro de 1890, mas seu trabalho de apenas três meses, limitou-se a apreciar, artigo por artigo, o projeto do Governo elaborado pela Comissão dos Cinco, revisto e acrescentado pela pena de Rui Barbosa.

Em sua obra sobre a Constituição de 1891, Aliomar Baleeiro a classifica como a "Constituição Literária", seja pelo estilo elegante e conciso que o texto recebeu de seu revisor, seja pelo fato de que em muitos de seus aspectos fundamentais ela jamais sairia do papel. Logo em seu primeiro ano de vida, a Constituição não foi respeitada pelos militares que, após a renúncia de Deodoro, enfraquecido politicamente pela dissolução do Congresso, promoveram um novo golpe que levaria ao poder outro Marechal, Floriano Peixoto, sem que fossem realizadas as eleições previstas na Carta.

Passada a fase incial, a dos marechais, o que se viu foi um quadro de fraude generalizada na realização de eleições, que manipuladas pelos líderes das oligarquias agrícolas, instituíram no país a chamada "política do café com leite". De acordo com esse "pacto", a Presidência da República deveria ser ocupada alternadamente por um paulista (café) e por um mineiro (leite). Cresce o poder dos líderes locais, os coronéis da antiga Guarda Nacional, durante esse primeiro período de vida republicana. Essa desmoralização do sistema político seria fator decisivo para a nova fase constitucional instaurada pela Revolução de 30. Tornou-se, pois, clássica a citação feita por Victor Nunes Leal, em seu “Coronelismo, Enxada e Voto”, do seguinte trecho de um discurso proferido por Assis Brasil na segunda Constituinte republicana. O político gaúcho sintetizava assim o ambiente eleitoral fraudulento que marcou o início da história republicana brasileira:

"No regime que botamos abaixo com a revolução, ninguém tinha a certeza de se fazer qualificar, como a de votar... Votando, ninguém tinha a certeza de que lhe fosse contado o voto... Uma vez contado o voto, ninguém tinha a segurança de que seu eleito havia de ser reconhecido através de uma apuração feita dentro desta Casa e, por ordem, muitas vezes, superior."

Não seria tão despropositado dizer que houve muito mais continuidade do que ruptura entre o 2º Reinado e a 1ª República. Mudanças maiores ocorreram a partir de 1930. E novamente as mudanças constitucionais chegariam embaladas em novos pacotes autoritários.

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