quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O mundo dos direitos

"Imagine um mundo parecido com o nosso, mas no qual ninguém tenha direitos. Um mundo sem direitos não é, necessariamente maligno ou cruel. As vidas posses e bem-estar das pessoas bem poderiam ser protegidos, por exemplo, mediante o comportamento caridoso de terceiros, ou mesmo pela imposição, a esses, de deveres apoiados em sanções. Em que medida seria esse mundo diferente do nosso? Seria tal mundo pior, ou, talvez, melhor que o nosso? Uma teoria sobre direitos pode ajudar a revelar o que poderia faltar, se algo faltasse, nesse mundo imaginário."

HAREL, Alon. Theories of Rights. Trad. Davi Diniz.

A provocação de Harel é sutil. O mundo imaginário sem direitos é, na verdade, a própria história humana. No passado recente de apenas 4 séculos, na Europa ocidental, foi que surgiu, com o pensamento racionalista, a idéia de sujeito individual, e com ele a idéia de direitos subjetivos. Antes disso, havia apenas privilégios, imunidades, poderes, deveres, e tudo funcionava bem, ou, pelo menos, funcionou bem até as revoluções liberais. Daí em diante o avanço dos direitos da pessoa humana não parou mais, evoluindo, geração após geração. Mas, do ponto de vista estritamente racional ou lógico, deve ser tão ou mais difícil viver na nossa "Era dos Direitos" do que no tempo em que eles, os direitos subjetivos, não haviam sido ainda inventados, criados ou descobertos. Não estou a dizer que o passado feudal, escravista, obscurantista e autoritário era um tempo melhor para se viver. Como diria Guimarães Rosa, "viver é muito perigoso", mas viver em liberdade e com igualdade é mais difícil, complexo.

A razão, no entanto, parece ser mais simples. Com o aparecimento e a massificação dos direitos individuais e coletivos surgem também os inevitáveis conflitos de interesses protegidos pelo ordenamento, às vezes, diretamente pela Constituição (colisão de direitos fundamentais). Certo, conflitos de interesses sempre existiram, mas a novidade é que esses interesses passaram, na modernidade, à imprecisa categoria de direitos fundamentais. São agora universais, pertencem a todos, não apenas a alguns grupos, e, por isso mesmo, se colocam em posição de equivalência entre si.

O resultado prático é menos animador, pois ninguém pode afirmar que é titular de todos os direitos fundamentais, ou que possa exercê-los e exigí-los sempre na mesma intensidade e em qualquer circunstância. O enorme ganho civilizatório obtido com a universalização e diversificação do catálogo de direitos subjetivos não deve, portanto, esconder as dificuldades também maiúsculas de sua realização prática.

Na vida real, todos sabemos, os direitos são conquistados. No entanto, essa conquista não é, e não foi, apenas política, mas também teórica e retórica.

No plano político, os direitos irrompem na história com as revoluções liberais do séc. XVII (Inglaterra) e XVIII (França e EUA), mas não ficaram por aí. A emergência de novos conflitos e novas formas de opressão dos seres e grupos humanos tem provocado até hoje a ampliação do catálogo de direitos fundamentais. O campo em que ocorre esse processo sempre foi o da ação política stricto senso. Nos parlamentos, governos, processos constituintes, plebiscitos, enfim, nesses espaços tradicionais da política é que os direitos recebiam o reconhecimento formal de sua validade, numa palavra, legalidade. Ainda é assim que ocorre, mas o reconhecimento de que a Constituição e seu catálogo de direitos tem força normativa tem provocado o deslocamento das fontes tradicionais do Direito, dos parlamentos para os tribunais constitucionais, da política para a retórica e a argumentação jurídica.

É bem verdade que o processo político que dá início à "Era dos Direitos" foi precedido pela elaboração conceitual (filosófica) das bases racionais que permitiram realizar essas profundas transformações modernas na estrutura da sociedade, basicamente: o contratualismo e a idéia de vontade geral como pilar da representatividade política; a teoria da separação de poderes para organizar e auto-limitar o exercício da força; e a teoria dos direitos subjetivos naturais, inerentes ao indivíduo humano por dignidade própria e como forma de limitar externamente a força do Estado.

Mas a questão teórica mais interessante em relação aos direitos fundamentais não está mais no plano de seu fundamento. Se eles têm ou não razões últimas e absolutas ou se os direitos são de fato criações históricas e, por isso mesmo, relativos. Essa questão do fundamento, é Bobbio quem diz, foi superada pelo reconhecimento normativo que os direitos fundamentais receberam das constituições e dos tratados internacionais. Para o pensador italiano, uma vez positivados, o problema seria então de cunho político, garantir a eficácia dos direitos declarados.

Ocorre que a tarefa de garantir a eficácia dos direitos fundamentais é divida hoje em dia entre a Política e o Direito. A positivação dos direitos trouxe para a arena da jurisdição constitucional a tarefa de realização dos direitos. E no plano jurídico não operam as mesmas motivações, ferramentas e procedimentos da Política; quando se trata de garantir juridicamente a eficácia de um direito fundamental vale uma outra racionalidade procedimental que tenta, ao mesmo tempo, enquadrar e legitimar o discurso retórico-argumentativo, para que este não caia em mera oposição ideológica. As ferramentas conceituais e normativas do direito constitucional posicionam os lados do conflito de um modo diferente do político. A disputa jurídica, os litígios de um modo geral, mas os conflitos constitucionais em particular, não deve ser resolvida pelo poder de "vontades majoritárias", mas pelo poder de convencimento de "juízos razoáveis".

Por isso, uma teoria dos direitos fundamentais, como a de Robert Alexy, deve permitir a identificação precisa dos direitos fundamentais de modo a facilitar sua aplicação. A intenção de Alexy é analítica, ele não se compromete com a avaliação axiológica, nem diretamente com a retórica em si, mas apresenta um mapa precioso de definições e conceitos essenciais tanto para facilitar a compreensão desse mundo dos direitos fundamentais, quanto para aprimorar os recursos argumentativos da prática jurídica nesse universo.

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