quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Hbbs

...dois olhos no gato
que o gasto da confiança
é o fracasso do contrato
- bellum omnium contra omnes -
o Diabo no meio da rua
Don Quixote, um seqüestrado.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Força normativa: para a Constituição sair do papel

Parece até redundante, nos dias de hoje, falar em força normativa da Constituição. Ora, se ela é a lei maior de uma nação não é natural que tenha força normativa? Em outras palavras, como lei que é - e ainda posicionada acima das demais -, não seria óbvio dizer que a Constituição nos obriga a todos o seu cumprimento?

Mas não é assim tão simples o problema da força normativa de uma constituição. Tanto é verdade que um dos textos importantes na relação bibliográfica de nossa disciplina tem exatamente este título ("A Força Normativa da Constituição"), e foi escrito por Konrad Hesse, professor alemão, em 1959, dez anos após a promulgação da Lei Fundamental de Bonn, a Constituição da Alemanha do pós-guerra, momento em que o conceito trazia um sabor de novidade.

Não é por acaso que Hesse tenha iniciado seu trabalho lembrando outro texto importante - para rebater suas proposições: "A Essência da Constituição", de Ferdinand Lassalle. Como vimos, em sua obra, Lassalle fazia a distinção entre a Constituição jurídica ("folha de papel") e a Constituição real (soma dos fatores reais de poder de uma sociedade), para sustentar que as questões constitucionais não seriam questões jurídicas - como são os contratos, as obrigações, os crimes e as penas, os tributos etc. -, mas verdadeiras questões políticas, ou seja, questões que se resolvem pela intervenção direta das forças dominantes, fora dos autos de um processo judicial, portanto.

Hesse não desconsidera a importância de se levar em conta, no estudo do Direito Constitucional, os limites históricos de uma determinada ordenação jurídico-constitucional diante da realidade social, isto é, que nenhuma constituição jurídica poderá pretender ter eficácia ("sair do papel"), sem a presença de condições sociais, econômicas e políticas para a sua realização. Por exemplo, de que adianta o texto de uma Constituição falar em democracia e respeito a direitos fundamentais, se o país for governado por uma ditadura? Ou ainda, qual seria a efetividade de um texto constitucional que falasse em igualdade e liberdade se, sob sua regência, a Nação praticasse a escravidão? Não obstante, nossas constituições de 1967 e de 1824 nos ajudam a perceber a importância da preocupação de Hesse, o que, de algum modo, também confirma o realismo do pensamento de Lassalle.

Pois bem. De volta à provocação inicial: mas o que teria acontecido a partir da segunda metade do século XX para que hoje, no Brasil, alguém venha a dizer que é mais do que natural que a Constituição seja algo pra valer, que sua validade aliás se coloca por cima das demais leis?

Bem, antes da bonança veio a tempestade, a segunda grande guerra mundial, o horror da guerra total que não poupava civis, do holocausto judeu, da endogenia nazista, da maior violação massiva dos direitos fundamentais da pessoa humana da era moderna, tudo isso mobilizou as nações democráticas do planeta para recuperar o sonho iluminista (ameaçado) do respeito e proteção da dignidade humana. Com o fim da guerra e a derrota do nazi-fascismo em 1945, as nações vitoriosas criaram a ONU e promulgaram uma nova declaração de direitos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que passou a ser a nova base ética de sustentação do mundo livre. Novas constituições democráticas surgiram, como a já mencionada Lei Fundamental de Bonn (1949) e a nossa Constituição de 1946, que retomava a trajetória democrática rompida por Vargas em 1937 (O caso brasileiro, porém, precisa ser examinado com mais cuidado, pois o regime de 46 seria rompido 18 anos depois com o golpe militar de 64, o que na verdade projeta para 1988 o início de nossa experiência constitucional dotada de força normativa).

Essa digressão histórica ajuda a compreender as lições do pensamento de Konrad Hesse, para quem se é verdade que uma Constituição, para ter pretensão de eficácia, precisa do apoio condicional de fatores concretos, não é menos verdade também que a Constituição, obra da razão humana, é ela própria uma força ativa dessa mesma sociedade e pode "impor tarefas".
"Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor
tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem
efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta
segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e
reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade
de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição
converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral -
particularmente na consciência dos principais responsáveis pela ordem
constitucional -, não só a vontade de poder, mas a vontade de constituição."

É fundamental, portanto, segundo Hesse que haja compromisso e respeito com os valores, princípios e regras assentados na Constituição para que esta deixe de ser apenas um documento simbólico e passe a reger efetivamente os destinos da Nação. Isso passa, necessariamente, pela idéia de força normativa do texto constitucional, que somente será alcançada e garantida por um sistema de controle de constitucionalidade dos atos políticos. Quando isso ocorre numa dada sociedade organizada podemos chamá-la de Estado de Direito.

Fica então a pergunta: podemos dizer que a nossa Constituição de 1988 tem força normativa? As tarefas que ela impôs estão sendo cumpridas, pelo menos em parte? Existe uma vontade de constituição entre nós, isto é, o respeito - principalmente nos momentos de crise - à ordem constitucional?

Já se passaram vinte anos desde a entrada em vigor da nossa "lei fundamental", houve várias crises nesse período, mas todas foram resolvidas dentro dos marcos jurídicos nela fixados. Isso é um bom sinal.

Lei Fundamental de Bonn

A Assembléia Constituinte alemã promulgou a Constituição a 23 de maio de 1949. Com a divulgação da Lei Fundamental, mais tarde modelo para muitos países, a República Federal da Alemanha passou a existir oficialmente.

A elaboração da Carta Magna alemã foi autorizada pelo três Aliados ocidentais nos chamados "Documentos de Frankfurt", em julho de 1948. Esta Assembléia Constituinte, batizada de Conselho Parlamentar, foi formada por 65 representantes de assembléias estaduais da Alemanha Ocidental e cinco observadores enviados por Berlim. O conselho foi presidido por Konrad Adenauer, da União Democrata Cristã, que ainda em 1949 seria eleito primeiro chefe de governo alemão ocidental pós-guerra.

A tarefa da Assembléia Constituinte era redigir uma Lei Fundamental com poderes de Constituição, mas que não tivesse caráter definitivo, para não ameaçar a almejada unificação alemã. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha havia sido dividida em duas, ocupadas por soviéticos e Aliados ocidentais. Em agosto de 1948, uma conferência havia definido as linhas gerais da Grundgesetz, prevendo os três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. A tarefa dos parlamentares foi complementá-la com mecanismos que definissem todos os direitos civis e criassem os fundamentos jurídicos do país.

Antes da aprovação da Lei Fundamental, muita polêmica agitou os dois grandes partidos alemães, a União Democrata Cristã (CDU) e o Partido Social Democrata (SPD). Uma questão controvertida foi, por exemplo, a igualdade entre homens e mulheres perante a lei. Somente o engajamento da social-democrata Elisabeth Selbert, apoiada por sindicatos e associações feministas, conseguiu garantir os mesmos direitos para os dois sexos. Com 53 votos a favor e 12 contra, a Lei Fundamental Alemã foi aprovada pela Constituinte e anunciada por Adenauer a 23 de maio de 1949.
Proteger fundamentos naturais da vida e dos animais

Com a unificação dos dois Estados alemães, em 1990, a Lei Fundamental deixou de ter caráter provisório. Em maio de 2002, o Parlamento aprovou a inclusão da proteção aos animais num parágrafo da Constituição. Com a emenda, a Alemanha foi o primeiro país da União Européia a incluir esse preceito entre as tarefas fundamentais do Estado. O parágrafo 20 da Lei Fundamental passou a ter três palavras a mais e o seguinte teor: "O Estado protege os fundamentos naturais da vida e os animais".

O professor Vital Moreira, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, destaca a importância das cartas magnas alemãs no contexto internacional: "Já a Constituição de Weimar, de 1919, serviu de modelo para as constituições entre as duas guerras. A ela se deve a constitucionalização dos direitos sociais e da economia". A Constituição de Weimar pela primeira vez ensaiara um compromisso no sistema de governo parlamentar, com um presidente da República eleito diretamente, dotado de importantes poderes institucionais próprios. Mas algumas das suas soluções acabaram por favorecer a instabilidade política da República de Weimar e, mais tarde, a tomada do poder por Hitler.
Weimar serviu de inspiração

Algumas das instituições da Lei Fundamental de 1949 baseiam-se nos preceitos da Constituição de Weimar, explica Vital Moreira: "É o caso da opção por um parlamentarismo racionalizado, com garantia de estabilidade governamental, sobretudo por intermédio da moção construtiva, que só permite o derrube de um governo desde que com a aprovação simultânea de um governo alternativo. É o caso da barreira dos 5%, que veda a eleição de deputados por pequenos partidos extremistas e que impede a pulverização parlamentar". "É o caso", prossegue o professor português, "da interdição dos partidos anticonstitucionais, que permitiu a proibição do Partido Comunista Alemão. Ou do afastamento da eleição direta do presidente da República, bem como do referendo. É o caso da garantia dos direitos fundamentais, sobretudo por meio de um Tribunal Constitucional, diretamente apelável pelos cidadãos mediante o mecanismo da queixa constitucional, em caso de violação dos seus direitos".

Nestes quase 60 anos, a Constituição alemã exerceu grande influência internacional. Não existe Constituição européia elaborada nas últimas décadas que não tenha colhido soluções na Constituição alemã. "Isso é evidente desde logo na Constituição portuguesa de 1976 e na espanhola de 1978. Ela foi fonte de inspiração também para as novas Constituições dos países do Leste Europeu, nascidas da transição democrática e da fragmentação da União Soviética", complementa Vital Moreira.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Lassalle, o constitucionalismo sem Constituição

Ferdinand Lassalle é um dos autores mais importantes para o desenvolvimento da teoria constitucional. Sua obra sobre o tema é um clássico: "A Essência da Constituição" (conferência para intelectuais e operários da Prússia em 1863) é considerada precurssora de muitos debates centrais dentro do constitucionalismo moderno, especialmente no que se refere à questão da eficácia das regras de uma constituição e - o que parece dar no mesmo - à questão das limitações práticas (políticas), ou debilidade jurídica das constituições escritas para a realização de grandes promessas. Além de naturalmente suscitar os debates sobre a questão do poder constituinte.

Lassalle não acreditava na chamada "força normativa da constituição escrita". Com certo menosprezo, ele chamava a esta de "folha de papel", em oposição à verdadeira constituição de uma sociedade, para Lassalle, a soma de seus "fatores reais de poder". Ele realiza, nessa obra fortemente marcada pelo sociologismo científico de seu tempo, uma teoria constitucional sem constituição, ou melhor, uma teoria em que a constituição não tem papel central. Um paradoxo, certamente. Mas, esse pessimismo do autor que pretendia descrever a essência da constituição era coerente com sua visão de mundo - ele era um advogado socialista. E tinha muitas razões para desconfiar das virtudes supostamente universais e democráticas dos documentos constitucionais, pois viveu - lutou, foi preso... - a experiência fracassada da Constituição prussiana elaborada no contexto da "Revolução de 1848". O fracasso da rebelião popular de 48 aguçou em Lassalle a percepção de que de nada adianta um texto constitucional democrático, isonômico, quando as forças políticas que compõem a nação não estão lá muito interessadas em respeitá-lo. A Constituição jurídica é uma folha de papel. A Constituição real não é jurídica, mas política. Essa era sua convicção. Mas, para o demonstrar, Lassalle começa a perguntar.

- Qual é a verdadeira essência de uma constituição, de toda e qualquer constituição?

Para começar a responder, Lassalle rejeita os conceitos jurídicos, segundo os quais uma constituição é o documento que organiza a vida política de uma nação. Para ele isso seria apenas a forma da constituição, não a sua essência. Sugere então que se compare a Constituição (objeto desconhecido) com a Lei. E novamente pergunta:

- Qual a diferença entre uma constituição e uma lei?

Lassalle então apela para a observação empírica:

"... não protestamos quando as leis são modificadas, pois notamos, e estamos cientes disso, que é esta a missão normal e natural dos governos. Mas, quando mexem na Constituição, protestamos e gritamos: 'Deixem a Constituição!' Qual é a origem dessa diferença? Essa diferença é tão inegável que existem, até, constituições que dispõem taxativamente que a Constituição não poderá ser alterada de modo algum; noutras, consta que para reformá-la não é bastante que uma simples maioria assim o deseje, mas que será necessário obter dois terços dos votos do Parlamento (...). Todos esses fatos demonstram que no espírito unânime dos povos uma Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de mais imóvel que uma lei comum. Uma lei fundamental."

Mas, novamente, o Lassalle crítico provoca:

- Mas o que seria essa lei fundamental, que se imponha como necessidade ativa sobre todas as outras leis?

Ou, em suas palavras já assumidamente irônicas:

"Muito bem, pergunto eu, será que existe em algum país - e fazendo essa pergunta os horizontes clareiam - alguma força ativa que possa influir de tal forma em todas as leis deste, que as obrigue a ser necessariamente, até certo ponto, o que são e como são, sem poderem ser de outro modo?"

E, finalmente, Lassalle responde:

"Os fatores reais de poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal e qual elas são."

Para demonstrar a tese, Lassalle recorre a um expediente retórico muito interessante, posto que absurdo. Ele pede aos seus interlocutores, ouvintes ou leitores, que considerem a seguinte hipótese: que tenha ocorrido um grande incêndio no país e que todas as versões de todas leis escritas, inclusive a Constituição, tenham desaparecido. Poderia nesse caso o legislador fazer novas leis da maneira como desejasse? Lassalle parte então para demonstrar, um a um, a força impositiva dos denominados fatores reais de poder da sociedade, para ele, a Monarquia, a Aristocracia, a Grande Burguesia, o Mercado Financeiro e, "nos casos extremos e desesperados", também o Povo.

De acordo com essa tese, nenhuma lei poderia pretender ser efetivamente praticada, nem a própria Constituição, se seus preceitos se chocassem frontalmente com os valores e interesses daqueles fatores reais de poder numa determinada sociedade, pois a soma deles é que representa a constituição real desta mesma sociedade.

E o que dizer da relação entre esses fatores e a constituição escrita, o documento jurídico? É simples, responde Lassalle: "Juntam-se esses faores reais do poder, os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem expressão escrita".

Reparem no ceticismo deste autor quanto ao idealismo jusnaturalista que marcou a primeira fase do constitucionalismo moderno. Para Lassalle não tem cabimento falar de direitos naturais, inerentes ao próprio homem como entidade abstrata. Ele tinha evidências concretas de que quando os burgueses pronunciavam a palavra direitos do homem, queria na verdade dizer, do homem burguês. Isso foi o que ocorreu, de modo seriado, com todas as revoltas populares lideradas pela burguesia, especialmente na França de 1789 e na Prússia de 1848, ou seja, o recuo, a contra-revolução, tudo em nome da estabilidade dos poderes dominantes (as oligarquias), ainda que tivessem que admitir nos consorciados.

Mas, ainda não terminou sua argumentação, ou demonstração, como decerto preferiria chamar o autor. Lassalle adverte que seria ingênuo imaginar que os textos constitucionais manifestassem expressamente a predominância do poder financeiro, ou da monarquia, ou dos industriais. Lembra que isso se define de modo mais "diplomático", isto é, definindo-se um sistema eleitoral elitista e excludente; mantendo-se o controle dos representantes eleitos por uma segunda Câmara de decisão composta por aristocratas, o Senado; mantendo-se o exército fora do alcance das regras constitucionais e à disposição do monarca; e, finalmente, contando ainda com a desorganização do poder popular, que somente em situações-limite é capaz de mostrar supremacia. Claro, este era o retrato da ordem institucional de seu próprio tempo, a Prússia da segunda metade do século XIX, em plena ressaca da "revolução burguesa".

Esse contexto, como já disse, ajuda a explicar o pessimismo, ou ceticismo de Lassalle em relação às constituições escritas, as leis fundamentais dos países modernos. Mas, não livra seu pensamento de algumas contradições finais. Ora, pergunto eu, se a constituição real de um país é a soma de seus faores reais de poder, como explicar a ocorrências das revoluções? Quer dizer então que pode haver mudanças nesses fatores reais de poder? Que tipo de ideal poderia ser capaz de mobilizar as massas contra a injustiça e a opressão a ponto de provocar transformações na sociedade? Seria mesmo menos importante para operar tais transformações a influência da "consciência coletiva" e da "cultura geral"?

A resposta de Lassalle talvez fosse a mesma da conclusão de sua obra:

"Os problemas constitucionais não são problemas de Direito, mas do Poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar."

Se a visão de Lassalle é a mais realista possível diante da experiência histórica até então vivenciada a respeito dos textos constitucionais, não custa lembrar que seu projeto era o de desvendar a essência de toda e qualquer constituição, algo que ela deveria ser para ser chamada assim. Mas, parece que ao adotar esse sociologismo, ele consegue apenas isso, falar de sua própria experiência historicamente datada. Concordo, portanto, com a análise final de Aurélio Wander Bastos, no prefácio da edição brasileira (Lumen Juris, 5ª ed., 2000), quando diz que Ferdinand Lassalle "escrevendo sobre o que é uma Constituição, ensina exatamente o que não deve ser a essência de uma Constituição."

Seu pensamento receberia a crítica e a ação criativa de outro grande jurista, Hans Kelsen, no início do século XX.

Weimar, a Constituição social

Por Fábio Konder Comparato

Instituidora da primeira república alemã, a Constituição dita de Weimar, cidade da Saxônia onde foi elaborada e votada, surgiu como um produto da grande guerra de 1914-1918, que encerrou o “longo século XIX”. Promulgada imediatamente após o colapso de uma civilização, ela ressentiu-se desde o início, em sua aplicação, dos tumultos e incertezas inerentes ao momento histórico em que foi concebida.

A vigência efetiva dos textos constitucionais depende, muito mais do que as leis ordinárias, de sua aceitação pela coletividade. Ao sair de uma guerra perdida, que lhe custou, ao cabo de quatro anos de combate, cerca de dois milhões de mortos e desaparecidos (quase 10% da população masculina), sem contar a multidão dos definitivamente mutilados, o povo alemão passou a descrer de todos os valores tradicionais e inclinou-se para soluções extremas. Sem dúvida, o texto constitucional é equilibrado e prudentemente inovador. Mas não houve tempo suficiente para que as novas idéias amadurecessem nos espíritos e as instituições democráticas começassem a funcionar a contento. A Constituição de Weimar foi votada ainda no rescaldo da derrota, apenas sete meses após o armistício, e sem que divisassem com clareza os novos valores sociais. Ela não podia deixar, assim, de apresentar ambigüidades e imprecisões, a começar pela própria designação do novo Estado, que se quis reconstruir sobre as ruínas do antigo. A Carta política abre-se com a surpreendente declaração de que “o império alemão (das Deutsche Reich) é uma República”!

Mesmo antes do armistício de 11 de novembro, a Alemanha viu-se sacudida por uma rebelião naval, que em pouco tempo desembocou em verdadeira guerra civil. Em 29 de outubro de 1918, os marinheiros estacionados no porto de Kiel rebelaram-se contra uma ordem do comando naval da frota de alto-mar, para se lançarem à “batalha final”. Em 3 de novembro, a revolta ganhou adesões na quase-totalidade das forças navais, ao mesmo tempo em que, um pouco em toda parte, constituíam-se “conselhos de soldados e operários”, segundo o modelo soviético.

Embora a abdicação do Kaiser Guilherme II fosse insistentemente pedida, ele ainda tentou salvar a dinastia, ao nomear no início de novembro seu filho, o Príncipe Max de Baden, como chefe do governo. Alimentava com isso a esperança de ganhar tempo e, em último caso, abrir mão tão-só da coroa imperial, permanecendo como rei da Prússia.

Os acontecimentos, no entanto, precipitaram-se. Na noite de 7 para 8 de novembro, uma “República Democrática e Socialista” era proclamada na Baviera. No dia imediato, sentido que a liderança das forças populares lhes escapava em proveito dos grupos de esquerda mais radicais — notadamente o grupo Spartakus, chefiado por Karl Liebknecht —, os representantes do partido socialista majoritário alemão (MSPD) retiraram-se do governo e convocaram uma greve geral. O Príncipe Max anunciou então a abdicação do imperador, designou o líder dos socialistas majoritários, Friedrich Ebert, para exercer as funções de chanceler, e propôs a convocação de uma assembléia nacional constituinte. No mesmo dia 9, à tarde, o ministro Philip Scheidemann, também do MSPD, tomou a iniciativa de proclamar a república, do balcão da chancelaria em Berlim.

O governo provisório então formado, sob a denominação de Conselho dos Delegados do Povo, era chefiado por Ebert e compreendia três representantes dos socialistas majoritários e três do Partido Social Democrático Independente (USPD). Seus primeiros decretos foram o estabelecimento da jornada de trabalho de oito horas e a atribuição do direito de voto às mulheres. Seguiram-se várias medidas de assistência social aos setores mais carentes da população.

Os objetivos político-constitucionais dos partidos que compunham o governo provisório eram, porém, divergentes. Enquanto o MSPD propugnava a convocação de uma assembléia nacional constituinte e o estabelecimento de uma democracia parlamentar, o USPD manifestava-se a favor da imediata instituição da ditadura do proletariado e da completa socialização da economia, sem passar por uma reconstitucionalização formal do país.

Nos últimos dias de novembro, o governo promulgou uma nova lei eleitoral e convocou eleições para a formação de um congresso de representantes das diferentes províncias imperiais, que veio a se reunir em Berlim em 16 de dezembro. Em 20 de janeiro de 1919, esse congresso votou, por ampla maioria, a convocação de uma assembléia nacional constituinte. Uma semana antes, porém, exatamente entre 6 e 15 de janeiro, as forças policiais, que compreendiam vários grupos paramilitares, empenharam-se em sangrentos combates de rua em Berlim contra os militares do grupo Spartakus. Em meio à refrega, os líderes esquerdistas Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo foram capturados e sumariamente executados. Com o desaparecimento dessas grandes personalidades da esquerda, únicas em condições de resistir criticamente à influência do comunismo soviético, o movimento socialista alemão viu-se singularmente enfraquecido para ganhar a confiança das classes médias e enfrentar com êxito, nas urnas, o perigo montante da extrema direita totalitária.

As eleições para a constituinte realizaram-se em 6 de fevereiro e, contrariamente à expectativa, os partidos socialistas não alcançaram a maioria absoluta, obtendo 185 cadeiras (163 para o MSPD e 22 para o USPD), num total de 414.

O projeto para a Constituição foi redigido por Hugo Preuss, discípulo do historiador do direito e teórico do antigo comunitarismo germânico, Otto v. Gierke. Desde a sua concepção, portanto, a Constituição de Weimar se estruturava contraditoriamente, procurando conciliar idéias pré-medievais com exigências socialistas ou liberais-capitalistas da civilização industrial.

Instalada em 6 de fevereiro de 1919, a assembléia nacional constituinte encerrou seus trabalhos em 31 de julho seguinte, quando foi aprovada a nova Constituição por 272 votos contra 75 e várias abstenções.

Pouco antes, porém, em 9 de julho, a assembléia havia ratificado o tratado de Versalhes, que impôs à Alemanha indenizações de guerra em montante desproporcional e insuportável. Como advertiu Keynes, as potências vencedoras criavam com isso as condições predisponentes de um futuro colapso financeiro da República Alemã, tornando impossível a sua normal integração no concerto europeu do pós-guerra. O fator desencadeante da bancarrota adveio dez anos após, com o colapso da Bolsa de Nova York e a grande depressão mundial que se lhe seguiu. Abria-se, assim, o palco para a entrada em cena da barbárie nazista, que destruiu a República de Weimar em poucas semanas, no início de 1933.

Apesar das fraquezas e ambigüidades assinaladas, e malgrado sua breve vigência, a Constituição de Weimar exerceu decisiva influência sobre a evolução das instituições políticas em todo o Ocidente. O Estado da democracia social, cujas linhas-mestras já haviam sido traçadas pela Constituição mexicana de 1917, adquiriu na Alemanha de 1919 uma estrutura mais elaborada, que veio a ser retomada em vários países após o trágico interregno nazi-fascista e a 2ª Guerra Mundial. A democracia social representou efetivamente, até o final do século XX, a melhor defesa da dignidade humana, ao complementar os direitos civis e políticos — que o sistema comunista negava — com os direitos econômicos e sociais, ignorados pelo liberal-capitalismo. De certa forma, os dois grandes pactos internacionais de direitos humanos, votados pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1966, foram o desfecho do processo de institucionalização da democracia social, iniciado por aquelas duas Constituições no início do século.

A estrutura da Constituição de Weimar é claramente dualista: a primeira parte tem por objetivo a organização do Estado, enquanto a Segunda parte apresenta a declaração dos direitos e deveres fundamentais, acrescentando às clássicas liberdades individuais os novos direitos de conteúdo social.

Essa estrutura dualista não teria minimamente chocado os juristas de formação conservadora, caso a Segunda parte da Constituição de Weimar se tivesse limitado à clássica declaração de direitos e garantias individuais. Estes, com efeito, são instrumentos de defesa contra o Estado, delimitações do campo bem demarcado da liberdade individual, que os Poderes Públicos não estavam autorizados a invadir. Os direitos sociais, ao contrário, têm por objeto não uma abstenção, mas uma atividade positiva do Estado, pois o direito à educação, à saúde, ao trabalho, à previdência social e outros do mesmo gênero só se realizam por meio de políticas públicas, isto é, programas de ação governamental. Aqui, são grupos sociais inteiros, e não apenas indivíduos, que passam a exigir dos Poderes Públicos uma orientação determinada na política de investimentos e de distribuição de bens; o que implica uma intervenção estatal no livre jogo do mercado uma redistribuirão de renda pela via tributária.

Essa orientação marcadamente social e não individualista aparece até mesmo nas disposições que o constituinte classificou como se referindo a pessoas individuais. Assim é que o art. 113, de modo pioneiro, atribuiu a grupos sociais de expressão não alemã o direito de conservarem o seu idioma, mesmo em processos judiciais, ou em suas relações com a Administração Pública. Marcou-se, desta forma, a necessária distinção entre diferenças e desigualdades. As diferenças são biológicas ou culturais, e não implicam a superioridade de alguns em relação a outros. As desigualdades, ao contrário, são criações arbitrárias, que estabelecem uma relação de inferioridade de pessoas ou grupos em relação a outros. Assim, enquanto as desigualdades devem ser rigorosamente prescritas, em razão do princípio da isonomia, as diferenças devem ser respeitadas ou protegidas, conforme signifiquem uma deficiência natural ou uma riqueza cultural.

No campo da vida familiar, a Constituição alemã de 1919 contém mais duas inovações de importância. Ela estabeleceu, pela primeira vez na história do direito ocidental, a regra da igualdade jurídica entre marido e mulher (art. 119), e equiparou os filhos ilegítimos aos legitimamente havidos durante o matrimônio, no que diz respeito à política social do Estado (art. 121). Ademais, a família e a juventude são postas, precipuamente, sob a proteção estatal (arts. 119 e 122).

Mas foi, sem dúvida, pelo conjunto das disposições sobre a educação pública e o direito trabalhista que a Constituição de Weimar organizou as bases da democracia social.

Consagrando a evolução ocorrida durante o século XIX, e que havia contribuído decisivamente para a elevação social das camadas mais pobres da população em vários países da Europa Ocidental, atribuiu-se precipuamente ao Estado o dever fundamental de educação escolar. A educação fundamental foi estabelecida com a duração de oito anos, e a educação complementar até os dezoito anos de idade do educando. Em disposição inovadora, abriu-se a possibilidade de adaptação do ensino escolar ao meio cultural e religioso das famílias (art.146, Segunda alínea). Determinou a Constituição que na escola pública em ambos os níveis — o fundamental e o complementar —, o ensino e o material didático fossem gratuitos (art. 145, in fine). Ademais, previu-se a concessão de subsídios públicos aos pais de alunos considerados aptos a cursar o ensino médio e o superior (art. 146, última alínea).

A seção sobre a vida econômica abre-se com uma disposição de princípio, que estabelece como limite à liberdade de mercado a preservação de um nível de existência conforme à dignidade humana (art. 151).

A função social da propriedade foi marcada por uma fórmula que se tornou célebre: “a propriedade obriga” (art. 153, Segunda alínea).

Tal como a Constituição mexicana de 1917, os direitos trabalhistas e previdenciários são elevados ao nível constitucional de direitos fundamentais (arts. 157 e s.). nesse conjunto de normas, duas devem ser ressaltadas. A do art. 162 chama a atenção pela sua extraordinária antecipação histórica: a preocupação em se estabelecerem padrões mínimos de regulação internacional do trabalho assalariado, tendo em vista a criação, à época ainda incipiente, de um mercado internacional de trabalho. No art. 163, é claramente assentado o direito ao trabalho, que o sistema liberal-capitalista sempre negou. Ele implica, claramente, o dever do Estado de desenvolver a política de pleno emprego, cuja necessidade, até mesmo por razões de estabilidade política, foi cruamente ressentida pela recessão dos anos 30.

Nos arts. 165 e seguintes foi instituída a participação de empregadores na regulação estatal da economia. O movimento fascista tomou por base disposições da Constituição de Weimar para deformá-las, criando a organização corporativa da economia, sob a dominação do partido único.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A Prússia e a Constituição

A Prússia emergiu das guerras napoleônicas como uma das cinco potências européias, e o Zollverein (União Aduaneira) fizera com que toda a Alemanha (ou melhor, Confederação Germânica), exceto a Áustria, se ligasse pelo livre comércio e se desenvolvesse. A economia prussiana se desenvolvia a passos largos, mas a sua política não se modernizava. O rei Frederico Guilherme III prometera uma Constituição, mas morreu sem cumprir sua promessa. Seu sucessor, Frederico Guilherme IV, também não se empenhou em reformas políticas. Mas, precisando de dinheiro para construir uma ferrovia, o rei, obedecendo a uma determinação de seu antecessor, convocou a Dieta Unida, que deveria unir-se em Berlim em abril de 1847.

Os liberais eram maioria nessa Dieta e decidiram aproveitar a oportunidade para pressionar em favor da convocação de um Parlamento eleito pelo povo, condicionando a aprovação do empréstimo à promulgação de uma Constituição pelo rei. Esse, no entanto, mandou dissolver a Assembléia

No mesmo ano, as safras foram ruins, os preços do alimentos subiram e o ambiente entre os trabalhadores urbanos ficou agitado. A intelectualidade se uniu aos operários que, em 3 de março de 1848, fizeram uma manifestação nas ruas de Colônia. Duas semanas mais tarde, a insurreição irrompeu em Berlim. No dia 18 de março, a população exigiu de Frederico Guilherme IV o apoio às teses liberais e a convocação de uma assembléia nacional eleita pelo sufrágio universal. Na semana de Março de 1848, as manifestações e os comícios tornaram-se diários, os liberais exigiam uma Constituição, houve um choque entre soldados e manifestantes e logo surgiram barricadas por toda a cidade, lutando unidos contra as tropas reais burgueses, pequeno-burgueses e operários.

As revoltas foram imediatamente sufocada pelas forças prussianas. O rei Frederico Guilherme IV procurou eximir-se da responsabilidade pelo massacre. Retirou as tropas da cidade e a ordem passou a ser controlada por uma milícia civil. A bandeira vermelha, negra e dourada - símbolo de uma Alemanha unida e liberal - triunfava nas cidades prussianas. O rei identificou-se publicamente com a causa nacional alemã e convocou uma assembléia nacional. Em 1849 foi redigida uma Constituição para a Alemanha. Os conservadores, que queriam uma Alemanha unida, sob o domínio da Prússia, mas não liberal, começaram a articular uma reação.

A burguesia tentou tomar partido da revolução de Março de 1848 para unificar os estados alemães. A revolução expandiu-se por quase todos os Estados alemães. Ao mesmo tempo que o Parlamento se ocupava de infindáveis debates, os poderosos latifundiários e os príncipes debatiam-se com a contra-revolução. No mês de Abril desse ano, Marx e Engels tinham chegado à Alemanha onde se foram fixar na zona da Renânia.

Em Junho saía nesse local a "Gazeta Renana", dirigida pelo ideólogo socialista Karl Marx, e custeada por industriais liberais. Este periódico procurou forjar uma aliança entre socialistas e liberais em prol da democracia. Em Dresden, um reduto liberal e democrata, rebentou um movimentou popular. Em grande parte insuflado por periódicos como a "Gazeta de Dresden", que publicava artigos de Mikhail Bakunin, e "Páginas Populares", para o qual contribuía o compositor Richard Wagner, o movimento carecia de organização. A violenta batalha foi vencida pelas tropas governamentais, que estavam em maior número. Engels deixou Colônia em 10 de Maio de 1849 por Elberfeld, no Reno, cidade onde se ocupara da direção das barricadas. Bakunin foi preso e condenado à morte, mas sua pena foi comutada para prisão perpétua.

Um Parlamento foi reunido em Frankfurt em 18 de maio, abrangendo todas as tendências políticas alemãs. Adotou a supressão dos direitos feudais e aumentou as liberdades políticas. Os representantes dos Estados alemães perderam-se em discussões a respeito da unificação: havia os defensores da República (com partidários do federalismo, unitarismo e da democracia); outros defendiam a solução monárquica, tendo adeptos da participação da Áustria (seria a Grande Alemanha), e outros, com a exclusão da Áustria e predomínio da Prússia (seria a Pequena Alemanha). A solução encontrada, proposta pela burguesia, já em 1849, foi a de uma "monarquia federal" governada pelos Hohenzollern (dinastia prussiana), sendo a Coroa imperial da Alemanha oferecida a Frederico Guilherme IV que, pressionado pela ação dos nobres, recusou-a e não aceitou a Constituição de Frankfurt. Esta atitude foi repetida pelo governo da Áustria e dos outros Estados alemães. Embora o povo e os revolucionários quisessem ver aprovada esta Constituição, acreditando que ela poderia trazer algum progresso em termos de liberdades civis, esta também não lhes satisfez totalmente, visto que deixava o poder nas mãos dos antigos líderes. Começou assim a contra-revolução da nobreza. Em Novembro de 1848, a Assembleia Nacional de Frankfurt foi dissolvida sem oposição pela Prússia, o sufrágio universal suprimido e os privilégios da nobreza reestabelecidos. Os junkers, conservadores, membros da nobreza latifundiária, retomaram pouco a pouco o controle da situação. O sonho da unificação havia fracassado. Os radicais continuaram a lutar pela obtenção de justiça social, mas foram esmagados pelo exército prussiano.

Primeiro na Áustria, depois na Prússia, a restauração conservadora acabou por triunfar em toda a Alemanha. O sonho de uma Alemanha unida e democrática estava morto. A burguesia liberal alemã fracassara.

O triunfo da Revolução de 48 e as agitações operárias atemorizavam a burguesia alemã. Ela não aprofundou a revolução nem consolidou seu poder, como fizeram os ingleses (1688) e os franceses (1789). Abandonou seus aliados da véspera, pequeno-burgueses democratas e operários, e recompôs-se com a nobreza restauradora. Nos diversos Estados, as conquistas obtidas (liberdades, diversas Constituições) foram anuladas e o poder dos governantes restaurado em sua plenitude.

(...) Não obstante, o saldo das Revoluções apontou o caminho a seguir: a unificação deveria ser promovida pela Prússia, não mais pela via revolucionária (a emergência de ideologias proletárias levou a burguesia a se desvincular do proletariado), porém, sob a direção dos Hohenzollern.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Revolução e Constituição

O momento histórico que viu nascer o constitucionalismo, ou seja, as teorias (filosóficas, políticas e jurídicas) sobre o significado e o alcance das constituições escritas, foi tempo de grandes mudanças, de revoluções no sentido próprio da palavra, pois provocaram transformações na estrutura de toda a sociedade, inclusive no campo do conhecimento humano.

A mais notável de todas foi a francesa, chamada de "A Grande Revolução" (1789). Mas não foi a primeira revolução desse período que, nessa altura, já se poderia chamar de Modernidade. Uma década antes, os americanos já haviam feito a sua (1776), quando venceram a guerra pela independência contra a Inglaterra e a guerra civil, que reafirmou o compromisso do povo americano com os valores liberais.

Na Europa,esse período é marcado pelo fim do chamado "Antigo Regime". As nações européias eram governadas por déspotas, príncipes que acreditavam personificar o poder nacional, eram chamados de monarcas absolutos porque não conheciam limites à sua autoridade. Todos os regimes absolutistas começam a ruir nesse final do século XVIII. Na França, que era o grande centro iluminista daquele período, a queda foi grande, abrupta e violenta.

A nobreza francesa, como todas as outras, durante séculos acreditou - e fez acreditar - que havia sido agraciada com a ordem divina para apenas governar, sem trabalhar, isenta de qualquer tipo de tributo para a manutenção da Nação. Essa nobreza, que dias antes aproveitava as delícias do ócio nos jardins do imenso Palácio de Versailles, quando acordou do sonho, deu com o povo francês, inflamado pela liderança letrada da burguesia, a gritar nas ruas as palavras mágicas, liberdade, igualdade, fraternidade. Quem não conseguiu fugir para as monarquias vizinhas (Inglaterra, Áustria, Espanha...), perdeu tudo. Os bens foram confiscados para que, leiloados, revertessem em benefício do Tesouro nacional - o regime de Luis XVI estava falido e agora deposto.

No primeiro momento, isto é, logo após a queda da Bastilha em 14 de julho de 1789, a família real foi preservada e os nobres apanhados pelos revolucionários já reunidos em Assembléia Nacional foram simplesmente aprisionados. Vejamos a descrição destes fatos na versão da Enciclopédia Koogan-Houaiss:
"O povo de Paris rebelou-se em 14 de julho e atacou a Bastilha, uma fortaleza-prisão, na tentativa de obter armas e libertar vários prisioneiros políticos. Na luta foi morto o diretor da prisão. O rei foi obrigado a chamar novamente Necker para o cargo de primeiro-ministro. Mas a multidão em Paris, incitada pelos líderes revolucionários, começou a desempenhar um papel cada vez mais importante na revolução. Em outubro, uma multidão proveniente de Paris e formada principalmente por mulheres invadiu o palácio real de Versalhes. A família real teve de pedir proteção à Guarda Nacional, uma força armada organizada pela assembléia para manter a ordem. Ao mesmo tempo, os camponeses, em várias partes da França, começaram a revoltar-se contra os senhores feudais. Os nobres franceses, dentre eles o irmão do rei, começaram a fugir do país.

Durante os dois anos seguintes, a Assembléia Nacional aprovou leis que eliminaram muitos abusos do antigo sistema feudal. Os nobres perderam a maioria de seus direitos, privilégios e títulos. Inicialmente foi decidido que o governo deveria indenizá-los por suas perdas, porém mais tarde essa medida foi abolida.

A assembléia aprovou um documento famoso, a Declaração dos Direitos do Homem, em 26 de agosto de 1789. A Assembléia Nacional redigiu então uma constituição que transformou a França em uma monarquia constitucional, com apenas um corpo legislativo. Segundo a constituição, o rei somente poderia declarar guerra ou assinar tratados de paz com o consentimento do legislativo. A França foi dividida em departamentos e estes em distritos e cantões. Os eleitores tinham de ser contribuintes ou "cidadãos ativos". As propriedades da Igreja e dos nobres que haviam fugido do país foram tomadas pelo governo. Foram emitidas letras contra essas propriedades para a obtenção de fundos públicos. O clero teve de prestar juramento à nova constituição. Alguns de seus membros prestaram esse juramento, mas muitos se recusaram a fazê-lo. A Assembléia Nacional decidiu que nenhum de seus membros poderia ser eleito para a nova câmara, a Assembléia Legislativa, e dissolveu-se em 30 de setembro de 1791 para dar lugar ao novo governo. O rei na verdade não aceitou os atos da assembléia, embora aparentasse tê-lo feito. Em junho de 1791, tentou fugir da França com sua família, mas foi reconhecido em Varennes e trazido de volta a Paris. Os líderes serviram-se dessa tentativa para despertar a desconfiança do povo, que acreditava que Luís conspirava contra a França juntamente com os nobres que haviam deixado o país e os governos de outras nações. Vários países tinham ainda reis que governavam segundo a doutrina do direito divino. Esses reis desconfiavam do movimento revolucionário francês, pois temiam que o mesmo pudesse estender-se aos seus próprios países.

A nova assembléia reuniu-se em 1.° de outubro de 1791. Contava com 745 membros, eleitos pelos "cidadãos ativos", e representava sobretudo a classe média. Clubes revolucionários radicais, a maioria dos quais formados em 1789, logo se tornaram uma força importante no novo governo. Robespierre liderava os clubes jacobinos e Georges Jacques Danton, Jean Paul Marat e Camille Desmoulins eram membros dos franciscanos. Esses homens dominavam um grupo na assembléia, chamado Montanha, pois suas cadeiras ficavam situadas na parte mais alta do recinto, à esquerda do orador. Perto deles sentava-se um outro grupo importante, chamado Gironda, pois seus lideres eram provenientes de um distrito do mesmo nome. Os membros da Planície sentavam-se na parte baixa e central do salão. Os membros mais conservadores ficavam à direita do orador. Muitos historiadores acreditam que os termos direita e esquerda aplicados aos partidos políticos tiveram a sua origem na Assembléia Legislativa francesa. No decorrer da revolução, os jacobinos foram aos poucos tornando-se mais poderosos.
A Convenção
O partido radical assumiu o controle da assembléia e pediu a eleição de uma Convenção Nacional para redigir uma nova constituição, uma vez que a monarquia constitucional de 1791 chegara ao fim com o afastamento do rei. A Convenção reuniu-se em 20 de setembro de 1792. Eleita pelo voto de todos os cidadãos masculinos, contava com 749 membros. Seu primeiro ato foi proclamar a república na França. O perigo de uma invasão foi enfrentado com o fortalecimento do exército, que continuou a conquistar vitórias. Os dois grupos que haviam sido os mais fortes na Assembléia Legislativa, a Gironda e a Montanha, formavam agora os partidos conservador e radical na Convenção. Inicialmente os girondinos contavam com a maioria. Os radicais, apoiados pelo governo de Paris, queriam conduzir a revolução além do limite desejado pela classe média superior. Luís XVI foi levado a julgamento por haver traído o seu país. Muitos girondinos desejavam poupar sua vida, mas ele foi declarado culpado e executado. Em abril de 1793, a Convenção nomeou um Comitê de Segurança Pública para cuidar da segurança interna da França. Os radicais foram pouco a pouco ganhando poder até que, em junho de 1793, expulsaram os líderes girondinos e os prenderam.

O Terror

Com a subida ao poder do Comitê de Segurança, a revolução entrou na sua mais radical etapa. O comitê passou a dominar a França. Dentre os seus líderes estavam Danton, Robespierre, Lazare Nicolas Marguerite Carnot e Jean Marie Collot d'Herbois. Centenas e mais centenas de pessoas foram guilhotinadas por serem contra-revolucionárias ou terem despertado a desconfiança de algum membro do comitê. Paris acostumou-se ao ruído das carroças que rodavam pelas ruas levando pessoas para a guilhotina. Comissários foram enviados às províncias, onde passaram a praticar o terror em colaboração com os clubes jacobinos locais. Os aristocratas, inclusive Maria Antonieta, rainha da França, foram executados primeiro. Depois foi a vez dos moderados, dentre os quais estavam os girondinos. Finalmente os radicais começaram a lutar entre si pelo poder. Robespierre conseguiu obter a condenação e execução de Danton e outros antigos líderes. Mais tarde o povo se voltou contra Robespierre e também ele acabou morrendo na guilhotina. Os revolucionários não praticaram o Terror como um fim em si mesmo, mas como um método de controle político. A França estava seriamente ameaçada por inimigos, tanto dentro como fora do país. Robespierre e os outros líderes acreditavam que nem a França nem a revolução estariam seguras enquanto esses inimigos vivessem. Até mesmo a morte de Robespierre foi resultado de uma luta política. Os homens que o condenaram desejavam acabar com o seu poder e não com o Terror.
O Fim da Revolução.
A França estava, entrementes, conquistando vitórias nos campos de batalha. Os exércitos franceses tinham não só repelido os invasores como também levado a revolução para solo estrangeiro. Um oficial do exército, Napoleão Bonaparte, estava adquirindo fama como gênio militar. Um setor da Alta Burguesia passou a dominar a Convenção e a revolução chegou ao fim. O poder da Comuna de Paris e dos clubes jacobinos foi abolido. O povo de Paris revoltou-se, mas os levantes foram debelados. A Convenção elaborou uma constituição (1795) estabelecendo um novo governo. O legislativo passou a ter duas câmaras e o poder executivo foi entregue a uma junta de cinco diretores. O povo revoltou-se contra a medida tomada pela Convenção, segundo a qual 2/3 dos novos representantes deveriam ser escolhidos entre os membros da mesma Convenção. Mas Napoleão reprimiu o tumulto, a Convenção foi dissolvida e o novo governo se instalou no poder. De 1795 a
1799 o fervor revolucionário decresceu. A situação financeira da França era ruim e o país continuava ameaçado internamente pelo povo insatisfeito e externamente pelas nações inimigas. Alguns acreditavam que era necessário um governo forte e centralizado. Napoleão, que estava no Egito, regressou inesperadamente e tornou-se governante absoluto da França. "
Há muitas interpretações sobre o significado histórico da Revolução Francesa, entre estas a que viu nela um significado essencialmente burguês, ou seja, que a revolução aboliu os privilégios feudais e derrubou o regime absolutista foi feita pelo povo e em seu nome, ou melhor, em nome dos indivíduos doravante considerados iguais e livres por natureza, tudo bem, mas o efeito prático dessa transformação foi o de levar ao poder a burguesia. A definição da propriedade privada (sagrada e inviolável) como valor central da declaração de direitos do homem e a restrição do sufrágio aos proprietários deixava isso muito evidente. Vale lembrar aqui o que disse, a propósito, Michel Miaille, para quem:

"A noção de sujeito de direito é bem pois uma noção histórica, com todas as consequências que esta afirmação acarreta. Ouçam-nos bem: não se trata de lamentar ou de recusar que os indivíduos sejam sujeitos de direito. Em um dado sentido esta aquisição é portadora de uma libertação já que postula a destruição das relações tradicionais bem constrangentes(...). Nessa medida, a burguesia revela-se revolucionária, mas nessa medida apenas. É preciso compreender que, ao fazer isso, o novo sistema jurídico não cria ex nihilo uma pessoa nova. Pela categoria de sujeito de direito, ele mostra-se como parte do sistema social global que triunfa nesse momento: o capitalismo. É preciso, pois, recusar todo ponto de vista idealista que tenderia a confundir esta categoria com aquilo que é suposta representar (a liberdade real dos indivíduos). É preciso tomá-la por aquilo que ela é: uma noção histórica [1]."

Em outro lugar escrevi sobre essa grande contradição que é a noção de sujeito de direito. Conceito que se afirma nesse contexto de transformações radicais. O sujeito humano, a pessoa, o indivíduo humano ganha o status de fundamento e finalidade da organização social, do próprio Estado. O homem agora - e pela primeira vez na história - passa a ser detentor de novos direitos naturais e universais, ou seja, direitos que decorrem da própria natureza e razão humanas. Esse reconhecimento, não mais apenas filosófico, mas agora político, ainda que formalmente, é o que tornaria possível a constituição da sociedade, resultante do metafórico pacto estabelecido por tais homens livres e iguais, o contrato social. Acrescente-se, livres para participar do mercado, livres para contratar - fórmula jurídica adotada para a conversão das relações sociais - livres para negociar seus bens, mesmo quando o único bem disponível seja a força de trabalho. Já se pode notar a desigualdade material que resultaria desse arranjo. A isso chamamos, com a ajuda de Karl Marx, o conflito de classes. É que a igualdade, outro pilar da declaração de direitos, será entendida não no sentido material, igualdade econômica, mas no sentido formal de igualdade perante a lei. A lei do Estado, aprovada pelo Parlamento será a fonte do Direito por excelência daí em diante e sua expressão técnica, os códigos, o veículo mais utilizado para sua manifestação. Vale ressaltar, serão os códigos, encabeçados pelo Código Civil francês (Code Napoleon), não as constituições, os documentos jurídicos mais importantes no sentido prático para estabelecer a nova ordem social. As constituições liberais escritas dessa fase inicial da modernidade serão até chamadas por Ferdinand Lassalle, na primeira metade do século XIX, de meras "folhas de papel", tal a sua disponibilidade por parte dos daqueles por ele chamados "fatores reais de poder".
Segundo o filósofo espanhol Elías Díaz, a declaração dos direitos do homem e do cidadão, embora pretenda estabelecer no plano jurídico um catálogo de princípios e regras básicas para toda a sociedade, deve, pois, ser vista com esse elemento ideológico que a caracteriza, isto é, como uma declaração de direitos voltada essencialmente para o homem burguês. Vejamos:

“A Declaração de direitos de 1789 expressa com bastante clareza em nível superestrutural o sentido ideológico do jusnaturalismo racionalista dos séculos XVII e XVIII, o qual, pode-se dizer, representa em suas linhas gerais o modelo histórico do direito natural revolucionário, em contraposição ao outro modelo, mais freqüente, do direito natural conservador. Naquele contexto, com efeito, a ‘ordem natural’ coincide nos planos econômico e político com a ordem liberal, que é, sem dúvida, revolucionário frente ao absolutismo do antigo regime; o natural é ali a liberdade, aparecendo conseqüentemente os direitos naturais como paralelas declarações de liberdades.

Que o a-historicismo racionalista da Declaração defina como direitos naturais ou como direitos do homem (a terminologia é dual neste sentido e expressa aliás a ambigüidade da transformação iminente), o que na verdade são direitos da burguesia (ou melhor, direitos para a burguesia) de modo algum faz com que a Declaração perca
seu claro sentido progressista e revolucionário.

Convém insistir sempre nisto: a burguesia liberal é indubitavelmente revolucionária e
progressista frente à monarquia absoluta e frente aos estamentos privilegiados do antigo regime. Pois bem, afirmado isso, não é menos certo que a coincidência ideológica entre ordem natural e ordem burguesa, quer dizer, a sacralização dos direitos da burguesia (especialmente o direito de propriedade privada) desde o direito natural, acabará por dar a esses direitos ( e cada vez mais ao longo dos séculos XIX e XX) um sentido e uma interpretação liberal, sim, mas irremediavelmente conservadora."[2]

As revoluções e as subsequentes constituições desse período inauguram a modernidade política, mas estiveram longe de esgotar a luta pela garantia dos direitos fundamentais. Essa história ainda continua.

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[1] MIAILLE, Michel, Introdução Crítica ao Direito, Editorial Estampa, 2ª edição, Lisboa, 1989, pp. 120 e 121.
[2] DÍAZ, Elías. Legalidad-Legitimidad en el Socialismo Democrático. Madrid: Civitas, pp. 74-75. Tradução livre.)

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Contrato Social

Jean Jacques Rosseau

Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos, prejudiciais à sua conservação no
estado natural, os arrastam, por sua resistência, sobre as forças que podem ser empregadas por cada indivíduo a fim de se manter em tal estado. Então esse estado primitivo não mais tem condições de subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser.

Ora, como é impossível aos homens engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir as existentes, não lhes resta outro meio, para se conservarem, senão formando, por agregação, uma soma de forças que possa arrastá-los sobre a resistência, pô-los em movimento por um único móbil e fazê-los agir de comum acordo. Essa soma de forças só pode nascer do concurso de diversos; contudo, sendo a força e a liberdade de cada homem os primeiros instrumentos de sua conservação, como as empregará ele, sem se prejudicar, sem negligenciar os cuidados que se deve? Esta dificuldade, reconduzida ao meu assunto, pode ser enunciada nos seguintes termos.
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente.”

Tal é o problema fundamental cuja solução é dada pelo Contrato Social.

As cláusulas deste contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato, que a menor modificação as tornaria vãs e de nenhum efeito; de sorte que, conquanto jamais tenham sido formalmente enunciadas, são as mesmas em todas as partes, em todas as partes tacitamente admitidas e reconhecidas, até que, violado o pacto social, reentra cada qual em seus primeiros direitos e retoma a liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual ele aqui renunciou. Todas essas cláusulas, bem entendido, se reduzem a uma única, a saber, a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade; porque, primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo a condição igual para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os outros.

Além disso, feita a alienação sem reserva, a união é tão perfeita quanto o pode ser, e nenhum associado tem mais nada a reclamar; porque, se aos particulares restassem alguns direitos, como não haveria nenhum superior comum que pudesse decidir entre eles e o público, cada qual, tornado nalgum ponto o seu próprio juiz, pretenderia em breve sê-lo em tudo; o estado natural subsistiria, e a associação se tornaria necessariamente tirânica ou inútil.

Enfim, cada qual, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido, ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e maior força para conservar o que se tem. Portanto, se afastarmos do pacto social o que não constitui a sua essência, acharemos que ele se reduz aos seguintes termos:

“Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo.”

Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assembléia de vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. A pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras, tomava outrora o nome de cidade, e toma hoje o de república ou corpo político, o qual é chamado por seus membros: Estado, quando é passivo; soberano, quando é ativo; autoridade, quando comparado a seus semelhantes. No que concerne aos associados, adquirem coletivamente o nome de povo, e se chamam particularmente cidadãos, na qualidade de participantes na autoridade soberana, e vassalos, quando sujeitos às leis do Estado...

Livro I, VI.

CADERNO DE RECLAMAÇÕES DO TERCEIRO ESTADO DA PARÓQUIA DE LONGEY, FRANÇA, 1789

Nós, habitantes da paróquia de Longey abaixo-assinados, tendo nos reunido em virtude das ordens do Rei, na sexta-feira, dia 6 do presente mês de maio de 1789, resolvemos o que segue:
Pedimos que todos os privilégios sejam abolidos. Declaramos que se alguém merece ter privilégios e gozar de isenções, são estes, sem contradição, os habitantes do campo, pois são os mais Úteis ao Estado, porque por seu trabalho o fazem viver. Que até hoje foram quase os únicos a pagar os exorbitantes impostos de que esta província está carregada; que os campos estão arruinados e os cultivadores na impossibilidade de poder manter e criar sua família; que à maior parte falta o pão, visto os impostos que os sobrecarregam e as perdas que experimentam todos os anos, seja pela caça, seja por outros flagelos. Pedimos também que as talhas com as quais a nossa paróquia esta sobrecarregada sejam abolidas; que este imposto que nos oprime, e que só é pago pelos infelizes, seja convertido num só e único imposto ao qual devem ser submetidos todos os eclesiásticos e nobres sem distinção, e que o produto deste imposto seja levado diretamente ao Tesouro. Pedimos ainda que não haja mais gabela e que o sal se torne comerciável, o que seria um grande benefício para todo o povo e principalmente para nós, habitantes do campo, que pagamos esta mercadoria muito caro e que dela fazemos o maior consumo um imposto que nos e muito oneroso e prejudicial. (Seguem-se 12 assinaturas.) (Mattoso, Kátia M. de Q., op. cit. p. 4/5.)

A convocação dos Estados Gerais - Versailles, 1789

Por ordem do Rei. Nosso amado e fiel. Temos necessidade do concurso de nossos fiéis súditos para nos ajudarem a superar todas as dificuldades em que nos achamos, com relação ao estado de nossas finanças e para estabelecer, segundo os nossos desejos, uma ordem constante e invariável em todas as partes do governo que interessam à felicidade dos nossos súditos e à prosperidade de nosso reino. Esses grandes motivos Nos determinaram a convocar a assembléia dos Estados de todas as províncias sob nossa obediência, tanto para Nos aconselharem e Nos assistirem em todas as coisas que serão colocadas sob as suas vistas, quanto para fazer-Nos conhecer os desejos, e queixas de nossos povos, de maneira que, por mútua confiança e amor recíproco entre o Soberano e seus súditos, seja achado o mais rapidamente possível, um remédio eficaz para os males do Estado e que os abusos de toda espécie sejam reformados e prevenidos.

Dado em Versalhes, em 24 de janeiro de 1789. Assinado: Luis XVI. Secretário: Laurent de Villedeuil.

Fonte: MATTOSO, Kátia M. de Queiróz. Textos e Documentos para o estudo da História Contemporânea, 1789-1963. (São Paulo, HUCITEC, Ed. da Universidade de São Paulo, 1977).

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Bill of Rights (Virgínia 1776)

(Dos direitos que nos devem pertencer a nós e à nossa posteridade, e que devem ser considerados como o fundamento e a base do governo, feito pelos representantes do bom povo da Virgínia, reunidos em plena e livre convenção.)

Williamsburg, 12 de Junho de 1776.

Artigo 1° - Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança.

Artigo 2° - Toda a autoridade pertence ao povo e por consequência dela se emana; os magistrados são os seus mandatários, seus servidores, responsáveis perante ele em qualquer tempo.

Artigo 3° - O governo é ou deve ser instituído para o bem comum, para a proteção e segurança do povo, da nação ou da comunidade. Dos métodos ou formas, o melhor será que se possa garantir, no mais alto grau, a felicidade e a segurança e o que mais realmente resguarde contra o perigo de má administração. Todas as vezes que um governo seja incapaz de preencher essa finalidade, ou lhe seja contrário, a maioria da comunidade tem o direito indubitável, inalienável e imprescritível de reformar, mudar ou abolir da maneira que julgar mais própria a proporcionar o benefício público.

Artigo 4° - Nenhum homem e nenhum colégio ou associação de homens poder ter outros títulos para obter vantagens ou prestígios, particulares, exclusivos e distintos dos da comunidade, a não ser em consideração de serviços prestados ao público, e a este título, não serão nem transmissíveis aos descendentes nem hereditários, a idéia de que um homem nasça magistrado, legislador, ou juiz, é absurda e contrária à natureza.

Artigo 5° - O poder legislativo e o poder executivo do estado devem ser distintos e separados da autoridade judiciária; e a fim de que também eles de suportar os encargos do povo e deles participar possa ser reprimido todo o desejo de opressão dos membros dos dois primeiros devem estes em tempo determinado, voltar a vida privada, reentrar no corpo da comunidade de onde foram originariamente tirados; os lugares vagos deverão ser preenchidos por eleições, freqüentes, certas e regulares.

Artigo 6° - As eleições dos membros que devem representar o povo nas assembléias serão livres; e todo indivíduo que demonstre interesse permanente e o consequente zelo pelo bem geral da comunidade tem direito geral ao sufrágio.

Artigo 7° - Nenhuma parte da propriedade de um vassalo pode ser tomada, nem empregada para uso público, sem seu próprio consentimento, ou de seus representantes legítimos; e o povo só está obrigado pelas leis, da forma pôr ele consentida para o bem comum.

Artigo 8° - Todo o poder de deferir as leis ou de embaraçar a sua execução, qualquer que seja a autoridade, sem o seu consentimento dos representantes do povo, é um atentado aos seus direitos e não tem cabimento.

Artigo 9° - Todas as leis que têm efeito retroativo, feitas para punir delitos anteriores a sua existência, são opressivas, e é necessário, evitar decretá-las.

Artigo 10° - Em todos os processos por crimes capitais ou outros, todo indivíduo tem o direito de indagar da causa e da natureza da acusação que lhe é intentada, tem de ser acareado com os seus acusadores e com as testemunhas; de apresentar ou requerer a apresentação de testemunhas e de tudo que for a seu favor, de exigir processo rápido por um júri imparcial e de sua circunvizinhança, sem o consentimento unânime do qual ele não poderá ser declarado culpado. Não pode ser forçado a produzir provas contra si próprio; e nenhum indivíduo pode ser privado de sua liberdade, a não ser pôr um julgamento dos seus pares, em virtude da lei do país.

Artigo 11° - Não devem ser exigidas cauções excessivas, nem impostas multas demasiadamente fortes, nem aplicadas penas cruéis e desusadas.

Artigo 12° - Todas as ordens de prisão são vexatórias e opressivas se forem expedidas sem provas suficientes e se a ordem ou requisição nelas transmitidas a um oficial ou a um mensageiro do Estado, para efetuar buscas em lugares suspeitos, deter uma ou várias pessoas, ou tomar seus bens, não contiver uma indicação e uma descrição especiais dos lugares, das pessoas ou das coisas que dela forem objeto; semelhantes ordens jamais devem ser concedidas.

Artigo 13° - Nas causas que interessem à propriedade ou os negócios pessoais, a antiga forma de processo por jurados é preferível a qualquer outra, e deve ser considerada como sagrada.

Artigo 14° - A liberdade de imprensa é um dos mais fortes baluartes da liberdade do Estado e só pode ser restringida pelos governos despóticos.

Artigo 15° - Uma milícia disciplinada, tirada da massa do povo e habituada à guerra, é a defesa própria, natural e segura de um Estado livre; os exércitos permanentes em tempo de paz devem ser evitados como perigosos para a liberdade; em todo o caso, o militar deve ser mantido em uma subordinação rigorosa à autoridade civil e sempre governado por ela.

Artigo 16° - O povo tem direito a um governo uniforme; deste modo não deve legitimamente ser instituído nem organizado nenhum governo separado, nem independente do da Virgínia, nos limites do Estado.

Artigo 17° - Um povo não pode conservar um governo livre e a felicidade da liberdade, a não ser pela adesão firme e constante às regras da justiça, da moderação, da temperança, de economia e da virtude e pelo apelo freqüente aos seus princípios fundamentais.

Artigo 18° - A religião ou o culto devido ao Criador, e a maneira de se desobrigar dele, devem ser dirigidos unicamente pela razão e pela convicção, e jamais pela força e pela violência, donde se segue que todo homem deve gozar de inteira liberdade na forma do culto ditado por sua consciência e também da mais completa liberdade na forma do culto ditado pela consciência, e não deve ser embaraçado nem punido pelo magistrado, a menos, que, sob pretexto de religião, ele perturbe a paz ou a segurança da sociedade. É dever recíproco de todos os cidadãos praticar a tolerância cristã, o amor à caridade uns com os outros.

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

Votada definitivamente em 2 de outubro de 1789

Os representantes do Povo Francês constituídos em Assembléia Nacional, considerando, que a ignorância, o olvido e o menosprezo aos Direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governos, resolvem expor em uma declaração solene os direitos naturais, inalienáveis, imprescritíveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente a todos os membros do corpo social, permaneça constantemente atenta a seus direitos e deveres, a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo possam ser a cada momento comparados com o objetivo de toda instituição política e no intuito de serem por ela respeitados; para que as reclamações dos cidadãos, fundamentadas daqui por diante em princípios simples e incontestáveis, venham a manter sempre a Constituição e o bem-estar de todos.

Em conseqüência, a Assembléia Nacional reconhece e declara, em presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão:

I
Os homens nascem e ficam iguais em direitos. As distinções sociais só podem ser fundamentadas na utilidade comum.
II
O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis ao homem. Esses direitos são a igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade.
III
O princípio de toda a Soberania reside essencialmente na Nação; nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emane diretamente dela.
IV
A liberdade consiste em poder fazer tudo quanto não incomode o próximo; assim o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem limites senão nos que asseguram o gozo destes direitos. Estes limites não podem ser determinados senão pela lei.
V
A lei só tem direito de proibir as ações prejudiciais à sociedade. Tudo quanto não é proibido pela lei não pode ser impedido e ninguém pode ser obrigado a fazer o que ela não ordena.
VI
A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos tem o direito de concorrer pessoalmente ou por seus representantes à sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, quer ela proteja, quer ela castigue. Todos os cidadãos, sendo iguais aos seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, colocações e empregos públicos, segundo suas virtudes e seus talentos.
VII
Nenhum homem poder ser acusado, sentenciado, nem preso se não for nos casos determinados pela lei e segundo as formas que ela tem prescrito. O que solicitam, expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrárias, devem ser castigados; mas todo cidadão chamado ou preso em virtude da lei deve obedecer no mesmo instante; torna-se culpado pela resistência.
VIII
A lei não deve estabelecer senão penas estritamente e evidentemente necessárias e ninguém pode ser castigado senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada.
IX
Todo homem sendo julgado inocente até quando for declarado culpado, se é julgado indispensável detê-lo, qualquer rigor que não seja necessário para assegurar-se da sua pessoa deve ser severamente proibido por lei.
X
Ninguém pode ser incomodado por causa das suas opiniões, mesmo religiosas, conquanto não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.
XI
A livre comunicação de pensamentos e opinião é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode pois falar, escrever, imprimir livremente, salvo quando tiver que responder do abuso dessa liberdade nos casos previstos pela lei.
XII
A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita da força pública; esta força é instituída pela vantagem de todos e não para a utilidade particular daqueles aos quais foi confiada.
XIII
Para o sustento da força pública e para as despesas da administração, uma contribuição comum é indispensável. Ela deve ser igualmente repartida entre todos os cidadãos em razão das suas faculdades.
XIV
Cada cidadão tem o direito de constatar por ele mesmo ou por seus representantes a necessidade de contribuição pública, de consenti-la livremente, de acompanhar o seu emprego, de determinar a cota, a estabilidade, a cobrança e o tempo.
XV
A sociedade tem o direito de exigir contas a qualquer agente público de sua administração.
XVI
Qualquer sociedade na qual a garantia dos direitos não está em segurança, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição.
XVII
Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, a não ser quando a necessidade pública, legalmente reconhecida, o exige evidentemente e sob a condição de uma justa e anterior indenização.